Em nova formação, lendária banda da psicodelia pernambucana lança em setembro o LP 'Vendavais', com suas canções inéditas dos anos 1970.

Por Silvio Essinger em jornal O Globo
Cercados por uma disneylândia de sintetizadores vintage no ambiente retrofuturista do Orbita Music Studio, no Jardim Botânico, os músicos remanescentes da formação original do grupo pernambucano Ave Sangria não conseguiam deixar a ironia escapar: quarenta e quatro anos atrás, eles baixavam no Rio para gravar aquele que viria a ser cultuado primeiro LP. Jovem banda de rock psicodélico contratada pelo selo Continental, o que eles tinham à disposição era o Estúdio Havaí (atrás da Central do Brasil e mais frequentado pelo pessoal do samba), em gravações pilotadas por Márcio Antonucci, do grupo de jovem guarda Os Vips.
— A gente estava que nem cego no tiroteiro! — resume Marco Polo, cantor do Ave Sangria, na última quarta-feira, num intervalo da sessões de gravações de “Vendavais”, antes tarde do que nunca, o segundo LP do grupo. — Aquela era a primeira vez em que a gente entrava em estúdio. E o produtor, apesar de ser muito gentil e legal, não tinha experiência com gravação de rock. A gente queria fazer um som bem mais sujo, com a voz mais incrustada na massa sonora, mais solto.
Hoje, Marco Polo, Paulo Rafael (guitarrista) Almir de Oliveira (ex-baixista do grupo, hoje só cantor) são dirigidos no estúdio por Juliano Holanda, músico da geração pernambucana pós-mangue bit que, em 2015, criou a trilha da série de TV da Globo “Amorteamo”. Filho de um casal de amigos dos músicos do Ave, Juliano entrou como baixista e agora cuida para que ela consiga enfim traduzir, em disco, a potência de seu som ao vivo.
— É um som que me formou como músico, me sinto devolvendo o que eles me deram — festeja.
Exceto pela instrumental “Em órbita”, nascida no estúdio, as composições de “Vendavais” são todas da primeira encarnação do grupo, que se encerrou pouco depois do lançamento do LP “Ave Sangria”. A ideia do grupo é fazer o lançamento do álbum entre setembro e outubro, numa edição limitada em vinil, “com uma seda e um incenso dentro”, como diz Paulo Rafael.
— Naquela época (em 1974, quando gravaram o primeiro LP), a gente tinha muito mais música ensaiada, o repertório era bem mais vasto. O disco nos limitou muito, até na duração das músicas. Cada uma delas tinha sete, 10 minutos. Quando chegamos no estúdio, tivemos que fazer elas em dois minutos e meio. Agora saiu do jeito que queria — garante o guitarrista.

Assim como “Ave Sangria”, “Vendavais” se divide entre faixas mais acústicas (“Ser”, “Marginal”) e rocks mais pesados (“Dia a dia”, “O poeta”), resultantes da composição individual ou em dupla de Marco e Almir. Só “Barrás, o grávido” é do baterista Israel Semente, um dos falecidos membros do grupo (os outros são o guitarrista Ivinho e o percussionista Agrício Noya).
— Esse disco novo mantém algumas características da nossa linguagem. É um eco do primeiro disco sem ser uma repetição. A contestação, as imagens psicodélicas e o lado lúdico, de curtição e entretenimento, estão lá — diz Marco Polo.
Contratado numa época em que as gravadoras procuravam um novo Secos & Molhados, o Ave Sangria chegou a fazer sucesso nas rádios de Recife com “Seu Waldir”, uma fictícia declaração de amor de um homem para outro homem, em forma de rock-samba de breque.
— Eu soube que tinha gente que saía de casa para ficar em Olinda circulando em busca do boteco do Seu Waldir — recorda-se o vocalista. — Mas tinha um jornalista de um programa de TV que dizia que aquilo era um insulto à moral. Reza a lenda que a mulher de um general reclamou com o marido e ele ligou para a polícia. O disco foi retirado de todas as lojas e proibido de tocar nas rádios.
A censura contribuiu para apressar o fim do Ave Sangria. Os músicos (fora Marco, que partiu para o jornalismo, e Almir, que se tornou engenheiro de segurança do trabalho) foram tocar com Alceu Valença. O tempo passou e a internet contribuiu para criar o mito do LP e da banda.
— Em 2008, entrei no Orkut e tinha uma comunidade do Ave Sangria com 900 jovens — conta Almir de Oliveira.
— A gente era jovem e os adultos enterraram a gente. Agora somos adultos e os jovens reacenderam o nosso fogo — encerra Marco Polo.
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